“Toda a vida quotidiana está adaptada à água. Não há estradas, apenas waterways.”
Diamante fotográfico
Uma mistura de fascínio, curiosidade e uma imensa sensação de tranquilidade é o que senti ao deslizar pelas águas dos canais de Kerala. São por vezes tão estreitos como uma ruela e outras vezes tão largos como uma baía grande, mas, tanto num caso como em outro, o verde é a cor predominante que salta aos nossos olhos. Não tenho o hábito, no meu dia-a-dia, de ver o maravilhoso contraste entre o azul do céu e o verde intenso daquelas águas, com margens repletas de longos coqueiros e bananais, quais molduras de paisagens tropicais. Assim são as backwaters: centenas de quilómetros de uma intrincada rede de rios, canais, lagos e estuários que recortam a costa do mar Arábico, no extremo sul da Índia e que são consideradas a “jóia da coroa” do Estado de Kerala. Um paraíso para a fotografia!
No houseboat
Quem procura formas de explorar a região descobre logo que a forma mais emocionante de explorar as backwaters é alugando-se um Houseboat, um antigo barco de transporte de arroz (de facto, têm o aspecto de um bago de arroz!) e outros bens, feito com tiras de madeira atadas com cordas de fibras de coco, teto de bambus trançados com folhas de palmeiras e … nem um único prego. Atualmente, os seus cerca de 15 a 20 metros de comprimento estão luxuosamente adaptados com todas as facilidades e conforto que alguém pode desejar para um relaxante fim-de-semana ou para umas férias românticas regadas a boa comida, frutas, água de coco ou uma Kingfisher, a cerveja nacional de eleição. Entre 24 horas e vários dias, os programas são os mais variados e podem incluir desde visita a parques de vida selvagem a tratamentos Ayuerda. Mas seja num Houseboat ou numa canoa a remos, sentir as backwaters é uma experiência que não se esquece. Com a câmara nas mãos, por vezes ficamos divididos entre capturar cenas pouco vulgares ou simplesmente apreciar o momento. O deslizar do barco pela água, muitas vezes recortando o manto verde de jacintos que cobrem a superfície dos canais, transmitem uma sensação de paz que não deixa indiferente um observador mais sensível.
O dia-a-dia
Para chegar a Alleppey (desde Kollam), de onde parte a maior parte dos Houseboats e outros barcos de passeio, trocamos o comboio por uma viagem de oito horas de barco (por 300 Rúpias, cerca de €5,50). Em princípio, pareceu-nos aborrecedor estar 8 horas num barco. No entanto, são horas em que não sobra tempo para o tédio. A cada instante, por entre casas e coqueiros, e em ambas as margens, vemos cenas de um quotidiano que mais parecem contar histórias. Das pequenas vilas isoladas aos extensos e verdejantes campos de arroz, a vida dos moradores decorre com a naturalidade de um dia como outro qualquer mas que, para um fotógrafo, transforma-se numa oportunidade única de observar traços, costumes, comportamentos, expressões e tantas outras características que dão a uma cultura uma identidade única. Vemos pessoas na produção de corda a partir da folha da palmeira; mulheres no trabalho da construção; homens passando roupa a ferro; barcos em construção; pescadores a utilizar as antigas redes chinesas (reminiscência dos antigos laços de comércio); mulheres a caminhar com as suas roupas multicolores; crianças correndo com os seus uniformes escolares e a acenar com as mãos; cantos e acordes que se ouvem dos templos e mesquitas construídos logo à margem; pássaros exóticos a voar de uma margem à outra… e tantos outras informações de uma riqueza visual única.
Turismo Cultural
A meio caminho da viagem, parámos num restaurante nas margens do rio onde alguns nativos nos esperam para servir uma refeição do dia-a-dia em Kerala: arroz, vários tipos de legumes ao molho e um pequeno peixe frito, servidos na folha de bananeira e, para o espanto dos clientes, sem talheres. Como quem vai a Roma deve agir como romano, comemos despreocupadamente com as mãos (depois de bem lavadas, obviamente) e acabamos por descobrir que, além da comida ser muito saborosa, afinal, até é bom mudar os hábitos.
Como o ambiente é propício a reflexão, naquele momento concluo que a diversidade cultural será, provavelmente, um dos maiores legados do turismo. Estimula o enriquecimento cultural, aumenta as opções de escolha e oferece a verdadeira sensação de mudança de ambiente, tão merecida depois de um ano de trabalho, num caminho já trilhado e sabido. Que chatice será o turismo do futuro (e consequentemente a fotografia de viagem) se, como herança deste mundo cada vez mais globalizado, encontrarmos no nosso destino turístico pessoas que usam as mesmas calças jeans e T-shirts, ouvirmos pelas rádios as mesmas músicas pop internacionais, vermos cidades com estilos arquitetónicos modernos ou entrarmos em lojas com os mesmos produtos e marcas a venda…
Genuinidade
A começar pela simpatia das pessoas locais que, através do olhar, expressão acolhedora ou sorriso espontâneo, comunicam com o estrangeiro (e com a câmara) como se de uma pessoa conhecida se tratasse. Estas características (as expressões, a abertura e receptividade ao estrangeiro e a mistura de cores das vestimentas, bijouterias e turbantes) mais uma vez fazem da Índia o lugar perfeito para a fotografia de retratos.
Além da beleza natural que constitui as backwaters, Kerala oferece muitos outros contextos potencialmente ricos para a fotografia. Em toda a costa podemos encontrar pequenas vilas piscatórias onde ainda se vê práticas pouco comuns como a arte xávega, um legado português deixado na época dos descobrimentos e as Chinese Fishing Nets, um intrincado sistema de pesca feitos de troncos de madeira, engenhosamente manuseado através de um sistema de contra-pesos.
A descoberta relativamente recente deste hot-spot para o turismo funcionou como uma alavanca para o crescimento económico local que na verdade já havia sido beneficiada, relativamente às demais regiões, devido à sua localização privilegiada com relação à histórica rota das especiarias. Ainda assim, está longe de se transformar em turismo massificado.
Se esta descrição cumpriu o seu objetivo, levou-te a criar imagens e sensações. Transportou-te ao mundo dos sonhos. Cabe a ti (re)descobri-las.
Artigo publicado na revista Super Foto Digital
Texto e fotos reeditados